Com um facão, um trabalhador rural corta, uma a uma, as folhas da agave sisalana – uma das espécies mais conhecidas do sertão nordestino hoje. Leva as folhas, com auxílio de jumentos, até a máquina que fará o desfibramento da fibra, ou seja, a raspagem da folha para retirada da polpa. Depois do desfibramento, o sisal é colocado em varais e exposto ao sol por alguns dias. Só após este processo é que passa pelas fases seguintes, que incluem pesar e selecionar a fibra de melhor qualidade. De lá, é destinado à indústria de cordas, tapetes e até ao artesanato.
É assim que o sisal é produzido há décadas. Desde a introdução dessa planta no Brasil, em 1903, quando um agrônomo trouxe os primeiros exemplares dos Estados Unidos há quase um século, pouco mudou de lá para cá. Esse processo é considerado tão árduo que é apontado por alguns pesquisadores, inclusive, pela razão pela qual gerações mais jovens não se interessam em continuar com ofício que, muitas vezes, vem de família.
"É um trabalho braçal, duro, no sol quente. No geral, o processo continua o mesmo. O desfibramento é muito pesado. Por isso, a gente está indo atrás de tecnologia para o sisal. Tem tecnologia para tudo. Para a soja, para o algodão, mas não para o sisal", diz o presidente da Associação Comunitária de Produção e Comercialização do Sisal (Apaeb), Jairo Santana, produtor há 20 anos.
Agora, porém, o sisal está no centro de um projeto que promete revolucionar a economia do Nordeste e, em especial da Bahia, que responde pela maior parte da produção do país. Dos dez municípios que mais produziram sisal em 2021, nove são do estado, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No ano passado, o estado produziu 96 mil toneladas de agave. A Paraíba, que ocupa o segundo lugar, produziu apenas 5,3 mil toneladas.
A ideia é implementar uma nova cadeia de produção do sisal a partir do conceito de biorrefinarias. Essa é a proposta do Brazilian Agave Development (Brave), projeto liderado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com ao menos outras cinco instituições brasileiras, incluindo a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e o Senai Cimatec.
De acordo com o professor Gonçalo Pereira, docente titular do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador do projeto, hoje, apenas 5% da planta é aproveitada. Todo o restante é descartado.
"A gente vai reutilizar tudo. As folhas, as fibras, produzir etanol de primeira geração, de segunda geração, produzir biogás", exemplifica.
Etanol
A produtividade do sisal é comparada à da cana-de-açúcar, que é a principal matéria-prima para produção de etanol no Brasil. “A gente consegue produzir a mesma coisa que a cana, só que no sertão”, continua Pereira.
Só para se ter uma ideia, com um hectare da agave tequilana – uma espécie mexicana “prima” do sisal, usada para fazer tequila –, é possível produzir sete mil litros de etanol. Ao todo, no Brasil, ele calcula que há 108 milhões de hectares onde é possível plantar e colher agave. Apenas a Bahia existem 28 milhões de hectares.
Hoje, a cana ocupa 4,5 milhões de hectares para gerar 30 bilhões de litros de etanol. Com o sisal, os mesmos 30 bilhões de litros de álcool seriam produzidos em 3,3 milhões de hectares.
“Aqui na Bahia, só esse bagaço que a gente joga fora lá na região de Feira de Santana daria para abastecer todos os caminhões com diesel e todo o gás de cozinha da população. E a gente simplesmente joga fora”, explica.
Na prática, o projeto terá duração de cinco anos e será composto de outras três iniciativas: Brave Bio, Brave Mec e Brave Ind. O primeiro deles, o Bio, foi assinado no mês passado, inclusive com a Shell, companhia que financia a pesquisa. Esse primeiro momento deve receber investimentos de R$ 30 milhões.
Nessa primeira fase, as ações incluem separar a variedade da agave, entender a variação do solo e a integração com o meio ambiente. "O tamanho do desafio é gigantesco", admite Pereira.
Energia
Segundo a engenheira e professora do curso de Engenharia de Energias da UFRB, Carine Alves, o potencial energético da agave chega a ser difícil de mensurar. Em comparação com a cana, o sisal exige 80% menos de água na produção.
“Esse projeto visa revolucionar a produção de energia pelo agave em substituição à cana-de-açúcar para diminuir os efeitos da produção de CO2 (gás carbônico). Mas também tem um impacto social muito grande, jamais visto, porque aproveita uma planta nativa de uma região pobre”, diz ela, que coordenará o laboratório do projeto na UFRB.
A universidade já aguarda a chegada dos equipamentos para o laboratório nas próximas semanas. Ao lado de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Alves vai coordenar dois dos dez subprojetos no Brave Bio. Uma das ações será a identificação das principais características da planta e dos melhores tipos de tecnologia.
Ela acredita que, a partir daí, serão pensadas soluções para problemas relacionados ao plantio e ao crescimento da agave sisalana, entre outras questões. Para ela, essa nova cadeia é economicamente viável.
“(A agave) Não compete com a alimentação; tem um ciclo de vida completo, ou seja, não gera resíduos; contribui de forma muito positiva para geração de emprego e renda e para a redução da utilização dos combustíveis fósseis'', pontua. Segundo a professora, desde o processo de retirada da planta do solo até o final, haveria um ciclo de carbono fechado. Ou seja, seria uma emissão neutra de carbono, já que há uma compensação de toda a emissão de gases que provocam o efeito estufa.
Também docente do curso de Engenharia de Energias da UFRB, o professor Luciano Hocevar reforça a importância de pesar a vocação do sertão. “É inadequado criar gado bovino no semiárido, mas é muito adequado criar caprino, ovino. Não dá para plantar morango, mas dá para plantar umbu, mangaba, caju. A gente tem que investir no local, em pesquisa, em desenvolvimento do que tem disponível na região”, frisa. Daí é que entra o agave.
De acordo com ele, há muitas frentes que podem ser atendidas a partir da pesquisa. Uma delas é o processo de colheita e conservação da fibra. “É um projeto muito duro, que precisa de muita força física. Por isso, está se restringindo aos mais antigos, correndo o risco de acabar. O que pode ser feito? Investir em equipamentos que facilitem o trabalho da colheita. A gente tem que planejar a entrada, a saída, os novos equipamentos”, acrescenta.
Ao mesmo tempo, ele reconhece que é uma estratégia também de longo prazo para a transição energética. Empresas de energia, como a Petrobras e a própria Shell, têm interesse em caminhar para essa transição de combustíveis fósseis para um cenário mais sustentável.
“Não vai se deixar de usar petróleo, mas vai ficar cada vez mais caro, cada vez mais vulnerável a situações como a própria guerra da Rússia e da Ucrânia. Agora, na COP, foi a primeira vez que os países ricos se comprometeram a financiar iniciativas para diminuir a produção de gases de efeito estufa para todo mundo”, diz, citando a conferência climática das Nações Unidas que aconteceu em novembro, no Egito.
Na avaliação do professor, essa energia que viria a ser produzida com a agave tem potencial para substituir o petróleo, porque tem quantidade, autossuficiência e constância.
“É inteligente usar espécies adaptadas ao clima para produção de energia, de alimentos e de produtos de biorrefinaria. Você só tem energia solar durante o dia, energia eólica quando tem vento. Não dá para alimentar um polo petroquímico, por exemplo, com energia eólica e solar, mas possivelmente, assim, dá”, diz Hocevar.
Industrialização
As próximas fases de Brave Mec e Brave Ind devem, respectivamente, focar em mecanização agrícola e industrialização para produção de etanol e biogás. O Senai Cimatec deve participar diretamente desses dois momentos. Segundo o gerente executivo da instituição, André Oliveira, a expectativa é que a entrada do Senai Cimatec seja formalizada no primeiro trimestre de 2023.
“A gente tem uma experiência muito grande em pegar tecnologias que ainda não estejam tão maduras para tornar possível de ir para o mercado, ou, no nosso linguajar, de escalonar”, explica.
Uma das ações que deve ser tocada pelo Cimatec é a de buscar novas técnicas para o plantio e para a colheita, além da industrialização em si, com o desenvolvimento de rotas tecnológicas para novos produtos a partir da agave. Ainda de acordo com Oliveira, além de um laboratório no Cimatec, é possível que seja construída uma estrutura nova da instituição na região sinaleira para as experiências de campo. O cronograma, porém, ainda está sendo definido.
“Hoje, a produção do sisal está muito focada em plantios menores, inclusive de agricultura familiar. A ideia é que a gente consiga ver formas de otimizar e dar mais produtividade para não ficar tão dependente do mercado internacional”, acrescenta.
Ele pondera, ainda, que a região sinaleira tem tido atenção de instituições nos últimos anos, inclusive do próprio Senai Cimatec. “Temos desenvolvido capacetes usando sisal, plástico com sisal, cadeiras escolares. Também temos uma trajetória de pesquisa sobre isso nos últimos anos. O ponto importante agora é unir esforços para esse tipo de desafio”, completa.
Outro dos objetivos do projeto é atrair investidores para o sertão. As biorrefinarias, segundo o professor Gonçalo Pereira, da Unicamp, gerariam emprego e renda, ao mesmo tempo que protegeriam o ambiente. A cana, usada como exemplo, também teve mais utilidades desenvolvidas ao longo do tempo. Depois da produção de açúcar em si, se percebeu que era possível fazer cachaça. Em seguida, veio o Proálcool, programa de substituição de derivados de petróleo para o etanol brasileiro, a partir da década de 1970.
“Nesse programa, a gente tem a possibilidade de gerar uma indústria e isso pode mudar o planeta. A gente tem, no mundo, muito mais zonas de semiárido do que de floresta. Podemos até dar uma marcha ré na imigração brasileira, porque o Nordeste vai ser uma terra de oportunidade”, explica.
Venda de sisal foi afetada pela guerra na Ucrânia
Enquanto isso, o cenário atual da produção de sisal não anda muito favorável. De acordo com o presidente da Associação Comunitária de Produção e Comercialização do Sisal (Apaeb), Jairo Santana, os principais prejudicados na cadeia são os trabalhadores do campo, especialmente os que trabalham como diaristas para colher a agave. Os preços caíram nos últimos meses, dificultando a exportação.
“Estamos vendendo só para o mercado interno. A gente deixou de comprar mais de 50% no campo, porque não está vendendo. Está dando para sobreviver, mas não no porte que o sisal tem e que merece para gerar a renda para o campo e para o produtor”, explica.
Segundo ele, a situação está relacionada à guerra da Rússia e da Ucrânia. A China, que era o principal comprador internacional, reduziu os pedidos em até 90%.
“São 46 municípios vivendo de sisal aqui na Bahia, então afetou bastante esse setor. A gente está correndo atrás de outras fontes para ver se abre mais portas. Acho que [os países que deixaram de comprar] devem ter um estoque alto, até porque tem outros que também produzem”, acrescenta.
Essa também é a avaliação do presidente da Federação de Agricultura e Pecuária da Bahia (Faeb), Humberto Miranda. “Os preços são muito baixos e há uma dificuldade dos produtores para vender. São problemas muito urgentes de ser resolvidos”, considera.
Para Miranda, o sisal tem potencial até para produção se ração animal ou de produção de estofados e painéis de veículos, além das utilizações já conhecidas e do uso relacionado à energia.
“Isso ainda não foi utilizado porque a gente não tem as condições ideais de trabalho e extração dessa fibra devido a essa inviabilidade dos métodos de produção do sisal. Uma vez que tudo isso seja resolvido, o sisal vai se tornar um grande promotor de desenvolvimento para o Nordeste, como já faz hoje”, completa, citando que a agave é fonte de renda para mais de 200 mil pessoas que trabalham direta ou indiretamente com a planta.
Thais Borges
Fonte: novacana